Uma vida satisfatória em três atos

Como simples mudanças na rotina são capazes de tornar os dias vívidos

Índice

  1. A vida se dá ao longo dos dias
  2. Ato I: o mínimo cuidado do corpo e da mente
  3. Ato II: atividade física
  4. Ato III: o que você mais ama vem primeiro
  5. Crie e acompanhe seus novos hábitos

A vida se dá ao longo dos dias

Como boa parte das pessoas, eu sinto ansiedade. A primeira grande fonte dessa sensação vem da desconexão entre a aparente infinidade dos caminhos a seguir e a finitude da vida.

Eu via minha vida se ramificando à minha frente como a figueira verde daquele conto. Da ponta de cada galho, como um enorme figo púrpura, um futuro maravilhoso acenava e cintilava. Um desses figos era um lar feliz com marido e filhos, outro era uma poeta famosa, outro, uma professora brilhante, outro era Ê Gê, a fantástica editora, outro era feito de viagens à Europa, África e América do Sul, outro era Constantin e Sócrates e Átila e um monte de amantes com nomes estranhos e profissões excêntricas, outro era uma campeã olímpica de remo, e acima desses figos havia muitos outros que eu não conseguia enxergar. Me vi sentada embaixo da árvore, morrendo de fome, simplesmente porque não conseguia decidir com qual figo eu ficaria. Eu queria todos eles, mas escolher um significava perder todo o resto, e enquanto eu ficava ali sentada, incapaz de tomar uma decisão, os figos começaram a encolher e ficar pretos e, um por um, desabaram no chão aos meus pés.

Sylvia Plath, A redoma de vidro

A segunda fonte é: dado essa vida que consigo visualizar, como vivê-la?

Como Sêneca destaca em “A brevidade da vida” 1, no momento em que somos capazes de vivermos de forma plena, deixamos de aspirar pelo futuro, não há mais ansiedade, pois o que uma futura hora poderia oferecer-nos além do que a presente já é capaz?

Seria, portanto, na resposta de como viver esta vida dada a sua finitude 2 e no viver diário deste propósito que reside a calma. É parte resignação ao abrir mão de todas as outras possibilidades sem se queixar, e parte modéstia por reconhecer que não se é capaz de debruçar-se em tantos assuntos e de fato vivê-los.

Ao longo de um ano eu busquei meditar sobre essas duas fontes e mudar de forma que pudesse viver com mais tranquilidade. Hoje, vivendo dias que considero muito melhores que os meus passados, consigo enxergar os três grandes movimentos que me trouxeram aqui.

As mudanças mais profundas vem de hábitos e estes são construídos de forma lenta e começo simplório. Portanto, nenhum dos três atos é grandioso. Não obstante, são capazes de abrir espaço para uma vida deliberada.

Além disso, o importante não são os atos, mas como efetivamente colocá-los em prática. É estreitar a distância entre como gostaríamos de viver e como de fato vivemos.

São ainda chamados de atos por serem sequenciais. Aqui a idéia é que um ato só comece quando o outro estiver solidificado como hábito.

Ato I: o mínimo cuidado do corpo e da mente

Dormir e comer. Mesmo sendo tão simples, eu não conseguia dormir mais de 7h por noite regularmente e fazer todas as refeições. Os efeitos disso são muitos: não colocar o corpo dentro de um ciclo constante de alimentação e descanso tira qualquer possibilidade de auto conhecimento sobre o seu nível de energia e quando você pode contar consigo mesmo.

Porém, há desafio adicional e que faz a diferença: para garantir as 7-8 horas de sono, é essencial ter horário para dormir e para acordar, assim como para não pular as refeições é bom ter um horário certo para fazê-las. Ainda assim, continua simples.

Hora de acordar

Sempre a mesma, mesmo nos finais de semana. Nada de soneca no despertador. Como o começo é difícil, as dicas são:

  • Deixe o despertador longe da cama, de forma que precise levantar para desligar;
  • Saiba exatamente as 3 primeiras coisas que você mecanicamente fará ao levantar (escovar os dentes, trocar-se, exercício, banho?);
  • Ao deitar-se, acostume-se com a idéia de que levantará naquele horário no dia seguinte.

Depois fica muito natural.

Hora de dormir

Além de ajudar a cumprir as horas necessárias de sono, este momento tem outra utilidade: relembra a finitude do tempo, coloca um limite no dia, faz com que larguemos qualquer atividade e sigamos pra cama.

Esse recado diário sobre a finitude do tempo vai de encontro a um dos males, segundo Sêneca, que dá a impressão às pessoas de que a vida é curta: vivem como se fossem imortais. Todo dia a vida acabará. E se por um acaso vamos consistentemente descontentes pro sono, é o que deveria motivar uma mudança no dia seguinte na forma como aproveitamos a vida.

Depois de um tempo, o cansaço vai bater próximo do horário que você acostumou-se a dormir. Eis as estratégias para o começo:

  • Alarme / aviso para dormir;
  • Buscar alinhar a sua rotina de sono com a(s) pessoa(s) que vivam com você;
  • Deitar-se até dormir no horário determinado, mesmo que não esteja com sono.

Durante dois meses esse foi o meu desafio: dormir e comer com regularidade e na hora certa. Com isso, entrega-se a si mesmo uma pessoa funcional e com disposição premeditada.

Ato II: atividade física

Embora seja argumentável que um pouco de atividade física ainda faz parte do mínimo cuidado com o corpo e a mente 3, o tamanho do desafio torna sensata a divisão.

Comecei com literalmente 15 minutos de hiit, que é um aeróbico de alta intensidade, mas qualquer modalidade menos intensiva e até mesmo mais curta está valendo, o mais importante é começar, conseguir cumprir e continuar.

O momento também é estratégico: sempre que quero criar um hábito, coloco como a primeira atividade do dia. Então, levanto, faço e sinto que já cumpri o que de mais importante estou construindo no momento.

No fim, não precisei ir muito além disso. Hoje a minha rotina é de 30 minutos de exercício cinco vezes por semana. É um alívio resolver a questão da atividade física ao torná-la um hábito tão simples.

No total, até o momento, foram 248 sessões de exercícios em 2020. Eles estão aqui realmente pelos benefícios em disposição e saúde mental, mas mesmo essa porção pequena e frequente pode trazer mudanças na aparência.

Ato III: o que você mais ama vem primeiro

Embora possa ser natural dizer que o que mais amamos fazer deveria ser prioridade, é cada vez mais rara a conexão entre a palavra prioridade e o que vem antes, de forma temporal: a primeira coisa a fazer-se.

O terceiro ato foi exatamente isso: minha primeira atividade no dia será o que eu mais gostaria de fazer todos os dias, o que traz significado para minha existência, deixa-me focado, envolvido, excitado com a idéia de estar vivo.

“Assim como um dia bem aproveitado traz um sono abençoado, uma vida bem empregada traz uma morte abençoada”

Da Vinci 4

Eu vou colocar aqui o meu prórprio propósito de forma simplificada: a investigação de um determinado assunto. Dentro disso tem-se estudar, aprofundar-se, fazer experimentos, criar, escrever, etc. Devido ao trabalho, minha primeira solução foi: 3 noites por semana dedicadas aos estudos. Eis o resultado:

Inconstância e frustração. Com isso vem o questionamento: será que eu gosto mesmo disso? Se gostasse de verdade, não conseguiria superar tudo e fazê-lo diariamente?

A resposta é que existem muitos outros fatores envolvidos e que impossibilitam que essas perguntas sejam respondidas com precisão nessas circunstâncias.

Se passar um dia sem estudar me mortifica tanto, por que não passar isso na frente de tudo?

Foi, então, que passei a ter o meu propósito como a primeira atividade que faço nos dias. Todos os dias.

Hoje, já com o hábito estabelecido, inverti com a atividade física e reservo para mim das 7h20 até as 10h para este propósito. Com isso, meu trabalho vai até às 19h, quando já estou satisfeito com o dia e fico tranquilo para tarefas mais cotidianas e mecânicas.

É pelo fato de diariamente empenhar-me no que eu considero ser o meu projeto de vida que não há mais o anseio pelos tempos futuros, ou desespero pelo tempo que corre. É o encontro diário com o que caracteriza a essência da minha noção de viver bem.

Há uma beleza em assumir este compromisso diário, que transforma o sentimento em ação e nos dá a convicção de chamar uma certa atividade de vocação. Se o que faz da paixão um amor é a constância, é neste hábito que encontro a resposta de como amar a vida, como vivê-la dada a certeza da morte. Resposta essa que seria impossível em qualquer definição mais complexa, visto que vivemos expostos a toda sorte de acontecimentos, sensações e experiências externas que são estéreis ao que não é tão simples quanto isso.

Crie e acompanhe seus novos hábitos

A sugestão geral é começar com uma versão leve do hábito que quer criar e aumentar progressivamente em 1-3 meses. Apenas partir para novos hábitos quando já tiver tornado rotina os anteriores. Quando estiver criando um hábito, faça daquilo a tarefa mais importante do dia.

O fato de marcar o progresso diário tem efeitos colaterais interessantes. O primeiro, obviamente, é constatar quando algo não está funcionando, ou quando uma mudança gerou efeito. Exemplo, como o exemplo de estudar após o horário de trabalho.

O segundo efeito, muito mais interessante, é que após adquirido o hábito, é possível identificar quando ele foi perturbado e refletir sobre a escolha que causou isso, o que leva a um aprendizado sobre si. Veja como durante duas semanas o hábito do estudo foi comprometido. Algo mudou, eu sei o que foi, e isso me dá clareza do efeito.

Neste caso, eu assumi um compromisso que não deveria. Assim, fica claro que em oportunidades similares eu deveria recusar e manter o foco.

Por fim, o caso é ilustrativo e os princípios devem ser ajustados para as diferentes situações.


A imagem do link é de Tijana Drndarski.